27/05/2013

SINAIS DE UM ENCONTRO IMPROVÁVEL (ficção breve)


«É dizer muito pouco que vivemos num mundo de símbolos, um mundo de símbolos vive em nós.
A expressão simbólica traduz o esforço do homem para decifrar e dominar um destino que lhe escapa através das trevas que o rodeiam.»
Jean Chevalier, Dicionário dos Símbolos, Lisboa: 1994, p. 9.


       
Numa certa tarde soalheira mas ventosa de maio, em que nem nuvens fantasmagóricas nem pingas cruéis de chuva fustigaram os telhados e os solos da capital, transeuntes entravam e saíam corriqueiramente apressados da estação do metro de Cabo Ruivo, uma das sete estações da Linha do Oriente, a vermelha.

Junto à plataforma de entrada para o metropolitano, sentado num dos bancos de espera, e alheado da situação circundante, estava um rapaz de figura excêntrica, semelhante a um herói de BD ou a alguém oriundo de uma tribo maori, e significativamente marcado de traços sul-americanos;  lia, deslumbrado, a TABACARIA de Álvaro de Campos, uma das modalidades de expressão do poeta Fernando Pessoa.


«[…] Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.Olho-o com desconforto da cabeça mal voltadaE com o desconforto da alma mal-entendendo.Ele morrerá e eu morrerei.Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,E a língua em que foram escritos os versos.Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como genteContinuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,Sempre uma coisa defronte da outra,Sempre uma coisa tão inútil como a outra,Sempre o impossível tão estúpido como o real,Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.[…]»
Talvez tambémToño Camuñas se interrogasse ele-próprio-o-artista-plástico-e-viajante, sobre a efemeridade da vida e a obra de um autor: qual o poder diabolicamente destruidor do tempo sobre os seus murais, as suas peles urbanas tatuadas em espaços públicos? A sua atividade de artista era isso mesmo, como quando fazia tatuar cada centímetro do seu mapa corporal, perfurar e modificar lugares de relevo do seu ser simultaneamente real e imaginado – o cobrir de formas e cores e símbolos, as marcas humanas da sua passagem tribal no planeta, os sinais à superfície dum mistério mais profundo e ancestral.

Toño Camuñas (n. 1967, em Madrid, vive no México)

Stand (excerto), 900 x 599.
Ver contexto do stand e outros trabalhos in: www.karmikoko.wordpress.com


Ramon, de sacola de pano a tiracolo contendo os seus pequenos blocos de desenho que mais parecem passaportes para outra dimensão ou para o além, regressava da sua visita ao Cemitério dos Olivais. Aí fotografara demorada e atentamente os signos lavrados por mãos humanas em pedra ou mármore ou metal; os mistérios elegíacos que a memória celebrativa dos vivos lapidara no leito tranquilo dos mortos. Quiçá rituais de passagem.

Ramon Sanmiquel (n. Manresa, Barcelona, 1973)– «Sant Obscur»
Descendo agora as escadas rolantes da estação do metro, o jovem artista depara-se com outros sinais gravados modernamente e que o transportam à experiência das gravuras rupestres…em linhas primitivas ou essenciais configuram-se, em grandes painéis, caçadores de arco e flecha lançando-se agilmente na perseguição da sua presa, um magnífico antílope de tempos imemoriais.



David de Almeida, Metropolitano de Lisboa
http://www.daviddealmeida.net/obrapublica.html
Fotografias in “Obra pública” da página oficial:

A estação metropolitana de Cabo Ruivo foi inaugurada a 18 de julho de 1998 e apresenta atualmente intervenções plásticas de David de Almeida (n. 1945, em S. Pedro do Sul): o passado histórico está visível através de motivos da arte pré-histórica.


De facto, entre estes artistas plásticos ocorre um encontro artístico possível: os três têm obras integradas na coleção do Centro Português de Serigrafia, no nº 6 da Rua dos Industriais, em Lisboa.